Is 25,6a.7-9, Sl 26, 1Jo 3,1-2, Jo 6,37-40
A data de finados sempre foi, pra mim especificamente, muito significativa. Desde pequeno, conheço de certo modo a morte, e sua aura misteriosa sempre pairou sobre minha vida, em virtude de minha circunstância real de órfão de pai, levado para a Eternidade por um morte violenta. Lembro-me de minha infância, do quanto era comum que, nas vizinhanças da data de Finados, limpássemos o pretíssimo mármore do túmulo de meu pai (e avô) com flanelas, buchas e querosene. Eu e minha mãe passeávamos pelos túmulos, calculando a idade na qual as pessoas haviam morrido, enquanto ela falava a respeito de parentes passados, subitamente revividos na memória dela em virtude do estímulo visual da plaquinha dos jazigos.
O silêncio literalmente sepulcral dos cemitérios é um convite quase que irresistível à meditação. A percepção de se estar cercado de mortos, idem. Hoje, vivemos em uma sociedade ultra-moderna e ultra-artificial, onde existem pessoas que passam por este mundo sem ver um parto ou uma pessoa morta. Há muito ruído, muito barulho, muitas distrações, muitas coisas que levam para fora, num frenesi absorvente, mas não pra cima, pra dimensão das verdades eternas que devem ser meditadas por todo humano que deseje levar uma vida refletida. Uma vida que não é refletida, dizia Sócrates, não vale a pena ser vivida. E a vida é, se tomada em sua realidade mais radical, limitada pela morte. A morte coloca um ponto final em tudo que conhecemos. Em algum momento, nosso corpo parará de funcionar, e nem a pessoa que mais nos ama suportará ficar ao lado de nosso corpo quando a putrefação iniciar. O cadáver será enterrado, esquecido numa tumba, para ser comido pelas bactérias que moram dentro de nosso corpo. Após alguns anos, nosso corpo se converterá em ossada, irreconhecível, tão mineral quanto uma pedra.
Diante daquele que é o pai de todos os mistérios, o homem se pergunta: o que acontece conosco após a morte? Viemos à existência em algum momento, e existe um limite no quanto conseguimos "ir pra trás" em nossas memórias. Seria legítimo se perguntar: se viemos a existência, nos percebendo como pessoas humanas, será que um dia sairemos da existência, voltando ao sono profundo e sem sonhos que é como percebemos o nosso "pré-eu"? Vamos para o "eternal oblivon", o esquecimento eterno que torna fútil e inútil o "como" vivemos aqui neste mundo? As sensibilidades são muitas, e há pessoas que nunca se inquietaram com esta pergunta, mas foi ela que me surgiu quando presenciei o velório e o enterro de minha avó, naquele dia 26/01/2015.
Ela já havia surgido antes, é claro, mas as buscas mundanas ainda conseguiam acalmar minha consciência filosófica, me distraindo com a multiplicidade absorvente típica dos cientistas agnósticos. Haviam me dito que eu precisava de certas coisas para ser feliz, e eu não as tinha. Em algum momento, eu as fui obtendo, mas quanto mais eu obtia tais coisas, mais coisas me pareciam necessárias para que eu tivesse um mínimo de felicidade. Sou um sujeito melancólico, sempre fui, e o "buscar" parecia mais felicitante do que o "fruir", pois aquilo que era fruído era percebido como tal, ou seja, como a futilidade que era. Eu estava me tornando o que eu desejava me tornar, mas era justamente ali que eu me sentia mais infeliz. Eu sentia dores de barriga, provenientes da Sindrome do Intestino Irritável que me acometeria por cinco longos anos (só foi curada nesse 2020), o que contribuía para o meu mau humor. Eu não tive força moral para abandonar minhas férias relaxantes para passar a noite com minha avó no hospital. E la estava minha avó morta, prestes a ser jogada num túmulo escuro e solitário, onde já repousavam os ossos de meu avô materno.
Se a consciência do "eu" acaba na morte, então que diferença faz o que eu faço e o que eu deixo de fazer? Que diferença faz trabalhar ou ser vagabundo? Que diferença faz ser bom ou ser mau? Que diferença faz morrer de velho ou se matar na juventude? Que diferença faz ser um abstêmio ou um drogado? Que diferença faz ter 50 de braço ou 25? "Vanitas vanitarum et omnia vanitas", já dizia o Eclesiastes. Numa vida sem sentido, tudo é vaidade.
É a morte que me colocou diante da questão que inquietou muitos, desde Machado de Assis até Albert Camus. "O homem diante da morte". Camus responde que a única resposta honesta ao absurdo da existência humana é a "revolta". Eu não sabia disso, mas me revoltei. Busquei respostas. Busquei no espiritismo, "religião" da pessoa que eu mais respeitava no mundo, e só encontrei mentiras. Fui estudar a velha religião piegas de minha pobre mãe (que na verdade era a única verdadeiramente rica nesta história toda), na qual eu havia sido criado, e nela encontrei um tesouro. A Santa Igreja Católica dizia: "o homem é capaz de Deus". A equipe de um padre católico, Padre Paulo Ricardo, dizia: "ou Deus existe, ou a vida é um absurdo, tertium non datur". Como aquele tesouro nunca havia sido a mim apresentado, eu que supostamente era catequizado e crismado? "Extra Ecclesia Nulla Sallus". Eu precisava de salvação, mas não sabia se aquela velha religião poderia me dizer algo a respeito dela. Eu precisava de um sentido para não cair na revolta amarga e desesperada diante da vida. Mas eu não queria uma solução falsa, um panaceia que acalmasse minha consciência e me fizesse seguir em frente, na direção de um objetivo tão falso e fútil quanto todos os outros.
Dixit Pascal:
« — Examinons donc ce point, et disons : « Dieu est, ou il n'est pas. » Mais de quel côté pencherons-nous ? La raison n'y peut rien déterminer : il y a un chaos infini qui nous sépare. Il se joue un jeu, à l'extrémité de cette distance infinie, où il arrivera croix ou pile. Que gagerez-vous ? Par raison, vous ne pouvez faire ni l'un ni l'autre; par raison, vous ne pouvez défaire nul des deux. Ne blâmez donc pas de fausseté ceux qui ont pris un choix ; car vous n'en savez rien. — Non ; mais je les blâmerai d'avoir fait, non ce choix, mais un choix; car, encore que celui qui prend croix et l'autre soient en pareille faute, ils sont tous deux en faute : le juste est de ne point parier. — Oui, mais il faut parier ; cela n'est pas volontaire, vous êtes embarqué. Lequel prendrez-vous donc ? Voyons. Puisqu'il faut choisir, voyons ce qui vous intéresse le moins. (...). Votre raison n'est pas plus blessée, en choisissant l'un que l'autre, puisqu'il faut nécessairement choisir. Voilà un point vidé. Mais votre béatitude ? Pesons le gain et la perte, en prenant croix que Dieu est. Estimons ces deux cas : si vous gagnez, vous gagnez tout; si vous perdez, vous ne perdez rien. Gagez donc qu'il est, sans hésiter. »
— Blaise Pascal,
Pensées, fragment 397.
Em bom português: é necessário apostar tudo na fé, mesmo sem certeza, pois se se está certo, se ganha tudo, se se está errado, não faz nenhuma diferença, pois todos os caminhos levam ao Nada. E nenhuma religião se demonstrou tão verossímil quanto o catolicismo. Fiz a aposta de Pascal. Foi a morte a isca que Deus utilizou para derramar Sua graça em minha vida. Foram os terços e as músicas piedosas cantadas diante do cadavérico resto mortal de minha avó que tocaram o meu coração, dizendo o que pela razão eu não podia ainda entender. Fui colocado diante do mistério, e apostei todas as minhas fichas nele. E, pouco a pouco, buscando viver na graça, buscando viver esta fé tão antiga e tão nova, Deus me mostrou a unidade na multiplicidade, e o próprio Cristo se demonstrou a razoabilidade e o sentido arquetípico de uma vida outrora irrazoável, absurda e arbitrária.
A morte é, como mistério, o pai de todos eles. Mas é um mistério de sombras que é iluminado pela Luz de Cristo. É um mistério que, se se olha do modo correto, coloca o homem diante da pergunta mais importante de sua vida: "o que eu devo fazer de minha vida?". E quem mais poderia responde-la, senão o próprio Deus feito homem que passou pela morte e a venceu, ressuscitando no Terceiro Dia? Quem mais?
Sem mais panaceias, meu povo. Sem falsas soluções. Sem sentidos sem-sentido, como "quero deixar um legado", "quero fazer um mundo melhor", ou ainda o "quero ter boas experiências" ou "quero ser feliz". Tudo isso é palha sob o vento, tudo isso é gota d'agua perante sol forte, tudo isso é monte de poeira perante redemoinho. Coloquemo-nos diante da morte, como homens de verdade. Encaremos a morte de frente, e vivamos com ela em nossa perspectiva. Encaremos o fato de que, como diria C.S Lewis, "a vida só tem sentido se este se encontrar pra além dela". Este sentido existe? Existe: e Cristo deixou Sua Igreja para nos ensinar a caminhar até ele. Que tenhamos coragem de abandonar todas as vaidades, vivendo em função deste destino, que buscar "ser santo como o Pai Celeste é santo", para que possamos, ao fim da vida, dizer: "Senhor, combati o bom combate, completei a corrida, guardei a fé". E Ele enxugará todas as nossas lágrimas, e nossa alegria será plena.
Que esse dia de Finados nos leve a refletir sobre a morte. E que, neste mês, possamos rezar pelas almas do purgatório, que encontraram este sentido mas não viveram pra ele com a radicalidade necessária. Que Deus seja louvado per omnia secula seculorum.
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